Meu coração derreteu quando vi esta foto feita pela Clarissa. O céu azul de primavera reflete nas águas do canal mais famoso de Utrecht, o Oudegracht (Velho Canal), com suas casas históricas e as antigas oficinas que datam do século X, quando a Holanda ainda era parte do Império Romano.
Nada se compara a essa época do ano. A luz começa a voltar, até mesmo as noites são mais claras. As flores começam a desabrochar, os pássaros cantam loucamente, as temperaturas são amenas. Nem quente, nem muito frio. Equilíbrio. Mágico para alguém que viveu praticamente a vida toda num lugar onde os dias são sempre quentes e as cores da paisagem nunca mudam.
O mudar das estações é fascinante. Te ajuda a lembrar que a vida é essa repetição de ciclos em combinação com aquilo que se preserva, não importa o quanto tempo passe. Como o Oudegracht. Antes de os portugueses pensarem em sair navegando por aí em busca do caminho para as Índias, antes de a história do Brasil começar a ser registrada, essas oficinas à beira da água que liga os rios Kromme Rijn e Vecht já existiam.
Se um dia você vier à Holanda, não deixe de visitar esse lugar. Você pode pegar um barco turístico que vai te levar pelos principais canais de Utrecht, como aqueles que existem em Amsterdã. Mas eu recomendo alugar o pedalinho e percorrer toda a extensão do Oudegracht e do Nieuwegracht (o Novo Canal, construído por volta de 1390).
No caso deste último, o pedalinho ou uma canoa são a única opção, creio eu, pois em alguns trechos o canal é bastante estreito. O Nieuwegracht se diferencia do Oudegracht por ser quase que exclusivamente residencial. As antigas oficinas viraram casas, algumas super fofas, com jardinzinhos cujo romantismo você só consegue apreciar em plenitude quando olha a partir da água.
É preciso ter força nas pernas (vá acompanhado) e principalmente no braço, pois o pedalinho é complicado de guiar. No ano passado, fiz o trajeto em sentido anti-horário, e, pedalando rápido, conseguimos fazer o itinerário em 1 hora e meia. Partimos da Stadhuisbrug, onde fica o ponto de aluguel do pedalinho, em direção ao Ledig Erf. Ali viramos à esquerda na Tolsteegbrug para entrar no Tolsteegsingel.
Nessa parte a distância entre as margens é bem maior, por isso é preciso prestar atenção para não perder a pequena entrada que dá acesso ao Nieuwegracht. Ela fica escondidinha à esquerda da Abstederbrug (brug = ponte). Não se preocupe em ficar perdido. Há plaquinhas com o nome de cada uma dessas pontes colocadas ali especialmente para os navegantes.
A pequenina entrada para o Nieuwegracht passa por baixo da Servaasbrug, ponte que fica no alto da Agnietenstraat. Ali começa a melhor parte do passeio. O Nieuwegracht, diferente do Oudegracht, é silencioso. E por ser estreito, poucos são os barcos passando por ali. É tão apertado que chegamos a ficar emperrados num certo trecho porque não conseguíamos fazer o pedalinho navegar em linha reta (eu disse que é difícil guiar esse negócio). Por uns bons minutos ficamos batendo de um lado e de outro do canal.
O Nieuwegracht continua em linha reta até a Trans, quando entorta para a direita. E justamente por isso muda de nome e vira Kromme Nieuwegracht (kroom = torto). O Kromme Nieuwegracht segue em sentido anti-horário numa curva de 180º. Ao longo dele, vários prédios da Universidade de Utrecht, entre os quais o da Faculdade de Humanas.
Na altura da Keistraat o canal quebra mais uma vez para a direita e você começa a navegar pelo Drift, um outro canalzinho bem estreito. Logo à frente, do seu lado esquerdo, está a igreja Janskerk. Na praça da Igreja, a Janskerkhof, acontece todos os sábados uma grande feira de flores que você provavelmente não conseguirá ver ali de baixo. Volte ali depois, por volta das 17 horas, quando os feirantes já se preparam para voltar para casa e vendem o que sobrou a preço de banana, se você pechinchar.
Em volta dessa praça também ficam a sede de uma das maiores Fraternidades Estudantis de Utrecht, várias danceterias e cafés e os prédios da Escola Nacional de Pesquisa em Linguística e o Instituto Utrecht de Linguística. O Drift continua por alguns poucos metros até a Voorstraat. Anote esse nome para voltar lá depois. É uma ruinha estreita super interessante, com vários restaurantes de comida oriental (recomendo o vietnamita Saigon), brechós e o meu inferninho preferido de Utrecht, o Accu.
Passada a pequena ponte da Voorstraat, o canalzinho vira Plompetorengracht. Continue pedalando até o fim dele, que acaba no Weerdsingel. Lembre-se de virar à esquerda quando chegar ali. Se virar à direita, irá parar no Wittenvrouwensingel, em volta do qual está uma das vizinhanças mais caras da cidade. Logo na curva, do lado oposto ao da avenida que margeia a água, fica uma das três localidades da penitenciária de Utrecht.
Mas pelo nosso trajeto inicial, você acaba de virar à esquerda. Siga o curso da água, passando por baixo de umas três pontes, até chegar num trecho em que você precisará escolher novamente para que lado vai. Mais uma vez, escolha a esquerda. Você estará voltando para o Oudegracht, onde tudo começou.
Nesse trecho final do itinerário você poderá apreciar melhor a vista dos terraços, onde os moradores de Utrecht adoram se sentar para aproveitar um dia de sol. Clima relax total. A essa altura você estará com sede e o corpo todo dolorido, mas bastante satisfeito com as belezuras que viu pelo caminho. A viagem termina onde começou, na Stadhuisbrug.
Faça como os Utrechtsers e vá relaxar num terraço. Eu recomendo meu café favorito, que fica a dois minutos andando do local onde você alugou o pedalinho. De naam van de zaak is… Café De Zaak*. Torça para encontrar uma mesa no Café De Zaak. O lugar vive lotado. Mas se não tiver sorte, não desanime. Peça sua cerveja direto no balcão e sente-se nos degraus das casas logo ao lado do café.
Se tiver fome, atravesse a praça e compre aquelas que na minha opinião são as melhores batatas fritas de Utrecht. A lanchonete se chama Broodje Ploff e fica logo na esquina à direita. Você pode voltar com o seu lanche para o café. O De Zaak é um dos poucos onde se aceita que clientes levem a própria comida. Dica da minha amiga Malka.
Sente-se e aproveite o sol, a cerveja e as frietjes. A vista não é das minhas favoritas, mas é interessante ficar observando o movimento. Dali você pode ter a sorte de ver um casal sorridente chegar num carro de época para se casar no prédio da prefeitura que fica em frente ao café. Família, amigos e um fotógrafo estão à espera deles. Quer final mais romântico?
*Parafraseando o quadro De Naam van de Zaak, do programa Klare Taal, da Radio Nederland, que explica os nomes de cafés e restaurantes espalhados pela Holanda. Traduzindo a frase: “O nome do negócio é… Café O Negócio”